
Duas tragédias, mais de 500 vidas perdidas. Há diferenças brutais e semelhanças desafiadoras entre os dois eventos que marcam o mês de janeiro na história recente do Brasil. Estudar os acontecimentos, compreender as falhas, estabelecer novos parâmetros de prevenção e extrair lições são obrigações de todas as áreas do conhecimento que podem, de alguma forma, contribuir para evitar que novas catástrofes como essas aconteçam.
Para quem pesquisa ou trabalha com gestão de crises ficam muitos aprendizados que aproveitamos para relembrar nesses dias nos quais se faz memória aos dois terríveis acontecimentos: 25/1/2019 – rompimento da Barragem I, na Mina Córrego do Feijão da Vale S.A, em Brumadinho (MG); e 27/1/2013 – incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria (RS).
Há algumas perspectivas que podem nos ajudar na análise dos aprendizados. Organizamos esse artigo a partir delas:
- Prevenção da Crises – Quando a ganância prevalece sobre a cultura do cuidado
- No gerenciamento dos eventos, os planos que não existem ou ficam bem guardados
- Os legados que precisam ser geridos no pós-crise
- Comunicação antes, durante e depois
1. Prevenção da Crises – Quando a ganância prevalece sobre a cultura do cuidado
Considerar todos os impactos negativos do negócio e investir em segurança preventiva é obrigação de qualquer empreendimento, das pequenas startups às megacorporações mundiais. Se na Boate Kiss o que se descobriu nas investigações foi que a casa noturna estava focada em resultados com o menor custo e quase nenhuma preocupação com a segurança, da mesmo forma, em Brumadinho, a gigante de classe mundial, Vale S.A, pode ter feito vistas grossas aos riscos mapeados, aos mecanismos de segurança que poderiam sinalizar o risco para os trabalhadores e comunidades e aos alertas para as vulnerabilidades. Nas brechas da legislação de segurança e na crença de que “não vai acontecer com a gente”, muitas omissões viram rotina.
Nas brechas da legislação de segurança e na crença de que “não vai acontecer com a gente”, muitas omissões viram rotina.
É por isso que mapeamento de riscos deve ser rigoroso e honesto, a atuação sobre as causas das vulnerabilidades precisa ser priorizada por meio de processos de segurança sérios e a comunicação do risco ou comunicação preventiva não é opcional. São todas iniciativas que fazem parte de uma cultura do cuidado que, infelizmente, ainda é rara nas organizações brasileiras.
Conforme denúncia do MPMG e da CPI da Câmara de Vereadores de Brumadinho, apenas no mês de junho de 2018, a mineradora Vale S.A, teve três oportunidades para corrigir problemas e evitar que a tragédia ocorresse.
Outro sinal de omissão da Vale S.A. é a própria existência, tão próximos da barragem – a partir de 500m –, de oficinas, escritórios administrativos, posto médico, refeitório para mais de 200 pessoas, entre outras instalações. Essas estruturas pertenciam à mina e estavam dentro da mancha de inundação, ou seja, ficavam no caminho natural da lama caso a barragem rompesse e foram todas destruídas.
Na Boate Kiss, o descuido com a segurança coincide com a lista das 10 causas do incêndio:
- O incêndio foi deflagrado por uma faísca de fogo de artifício empunhado por um integrante da banda Gurizada Fandangueira.
- O extintor de incêndio, localizado ao lado do palco da boate, não funcionou no momento do início do fogo.
- A boate Kiss apresentava uma série de irregularidades quanto aos alvarás.
- Havia superlotação: no mínimo 864 pessoas estavam no interior da boate.
- A espuma utilizada para isolamento acústico era inadequada e irregular, feita de poliuretano.
- As grades de contenção existentes na boate atrapalharam e obstruíram a saída das vítimas.
- A boate tinha apenas uma porta de entrada e saída.
- Não havia rotas adequadas e sinalizadas para a saída em casos de emergência.
- As portas apresentavam unidades de passagem em número inferior ao necessário.
- Não havia exaustão de ar adequada, pois as janelas estavam obstruídas.
2. No gerenciamento dos eventos, planos que não existem ou ficam bem guardados
Se na Boate Kiss os Planos de Proteção e Combate a Incêndios estavam vencidos e os alvarás necessários estavam irregulares, em Brumadinho, os mais de 600 trabalhadores próprios e quase 30 terceirizados trabalhavam aparentemente tranquilos, uma vez que empresas privadas, a própria Vale a a Agência Nacional de Mineração, entre outros órgãos, supervisionavam os riscos e a segurança para casos de desastres. Mesmo assim, o rompimento da barragem de rejeitos se deu às 12h28 min do dia 25/1/2019.
Em Santa Maria, em 2013, 242 jovens que saíram de casa para se divertir não voltaram para suas famílias. Em Brumadinho, a lama destruiu ou comprometeu de forma irreparável todas as formas de vida por onde passou, arrasando uma área equivalente a quase 300 campos de futebol.
E quando o pior acontece, como agir?
Em Santa Maria, Bombeiros, forças de segurança pública e prefeitura municipal deveriam ter planos de contingência e pessoas treinadas para atuar. Não foi o que se viu. Pelo contrário, na tentativa de compensar a precariedade de contingente dos Bombeiros, novas vítimas surgiram entre os voluntários que tentavam salvar amigos. Dos primeiros socorros ao atendimento no Instituto Médico Legal (IML) até o espaço para acomodar os corpos, tudo precisou ser improvisado e decidido na emoção dos acontecimentos.
Em Brumadinho, mesmo com a história recente na Barragem de Fundão, da Samarco Mineração S.A., – empresa controlada pela Vale S.A. e pela BHP Billiton, ocorrida em 5 de novembro de 2015, no Município de Mariana (MG), o acionamento de planos de contingência adequados, por parte da Companhia, não aconteceram. Ao contrário da Kiss, o Corpo de Bombeiros de MG deu exemplo de organização, trabalhando diuturnamente, inclusive no período de datas festivas como o Natal, para entregar os corpos para as famílias. Na data que marca um ano da tragédia, 70 membros do Corpo de Bombeiros ainda seguem trabalhando em 14 locais diferentes para encontrar os 11 desaparecidos.
Embora signatária do Plano de Atendimento a Emergências para Barragens de Mineração – PAEBM – a Vale S.A não colocou as ações em prática. O Plano inclui: elaboração – estudo e mapa de cenários –, designação das obrigações de operadores do Plano, informações técnicas necessárias para que a Defesa Civil promova treinamentos e simulações de situações de emergência em conjunto com as prefeituras e demais instituições indicadas pelo governo municipal, além de estar disponível para eventual atuação em conjunto com os órgãos citados quando solicitada formalmente. Deve também, promover treinamentos internos, alertar a população potencialmente afetada na zona de auto salvamento, entre outros.
No Sistema integrado de prevenção e gestão de crise, é fundamental que empresas privadas, órgãos governamentais e organismos de segurança ajam conjuntamente e se preparem com atividades periódicas para agir quando o pior acontece. Não dá para organizar a ação no momento da tragédia. Não sem causar mais danos e gerar novas vítimas.
A população local não foi alertada pela Requerida quando do rompimento das barragens, não se ouviu nenhuma sirene. Surpreendidas pela tsunami de lama, as pessoas fugiram às pressas para os pontos mais altos da região. A maioria dessas pessoas não conseguiu resgatar seus documentos, roupas, mantimentos ou qualquer outro bem. Outras não conseguiram salvar nem sequer a própria vida
(MPMG – Força-tarefa Brumadinho)
3. Os legados de caos que precisam ser geridos no pós-crise
Como a crise não acaba apenas quando se retira a última vítima, é preciso gerenciar toda a complexidade do pós-crise para que a marca/empresa/organização consiga recuperar a relação de confiança com a sociedade. No caso da Vale S.A, um ano depois da tragédia, só quem se sente à vontade com a marca são os investidores. No bolso dos acionistas a empresa recuperou seu valor e anima quem lucra com os negócios da mineradora. Já diante da sociedade, conforme aponta o Ministério Público de MG são pelo menos 25 direitos humanos fundamentais violados pela empresa. Um misto de medo, vergonha, raiva e decepção são sentimentos associados a reputação da Vale S.A. Quando uma marca é responsável por um desastre com consequências que devem perdurar por anos, envolvendo impacto econômico, medo e insegurança generalizadas, passivos ambientais e da saúde que impactam a integridade psicológica dos envolvidos, há muito a ser feito.
Já no caso da Kiss, como se trata de uma crise sem dono, uma vez que a precariedade do empreendimento se mostrou absurda diante das consequências da tragédia, a Prefeitura Municipal de Santa Maria (RS) e as forças da sociedade civil precisam assumir o pós-crise que vai além dos trâmites judiciais.
Iniciativas psicológicas, sociais e culturais para minimizar a dor de tantas famílias são imprescindíveis. A construção do Memorial Kiss, por exemplo, é uma dessas medidas que podem afagar a alma da comunidade afetada. O projeto, já aprovado, aguarda financiamento e demolição do imóvel incendiado. É importante que saia do papel após o julgamento dos acusados, o que deve acontecer ainda em 2020.
4. A comunicação que precisa ir muito além das técnicas óbvias
Por fim, é preciso abordar os aprendizados que envolvem o diálogo e a construção das narrativas que produzam sentido nas grandes tragédias. Um dos processos mais subestimados em todo o sistema de prevenção e gestão de crise, a comunicação é transversal a todas as etapas e fazem grande diferença desde iniciativas de prevenção até a recuperação das relações de confiança no pós-crise.
Em comum entre Boate Kiss e Brumadinho está a inexistência de comunicação preventiva. Os atingidos pouco ou nada sabiam sobre os riscos que estavam correndo e, ainda pior, não receberam orientação sobre o que fazer durante o evento crítico.
No auge da crise, algumas diferenças nas duas tragédias. Enquanto em Santa Maria (RS), sobraram equívocos e incomunicações, a Vale tratou de melhorar seu sistema de prestação de contas para o público a partir dos aprendizados que teve com o acidente de Mariana (MG) e das imposições dos acordos judiciais.
Embora em Brumadinho, pela primeira vez, a Vale S.A tenha investido em um sistema amplo de informações com os diversos interlocutores atingidos na crise, os resultados ficaram bem abaixo do esperado. Isso porque, seguir os manuais internacionais e atender as exigências dos acordos judiciais com a criação de canais de contato e porta-vozes treinados não transformam informação em comunicação. É preciso muito mais. A comunicação estratégica e dialogal deve estar presente em todas as etapas do sistema.
Para relembrar sempre!
Nenhuma organização pública, privada ou governamental está livre de viver situações de crise com grande repercussão pública. É, justamente, por isso que estar preparada com política clara que direcione a ação e com processos transparentes de respostas às emergências nos quais a comunicação tenha centralidade, é imprescindível no cenário de incertezas que se vive hoje no ambiente de negócios.
Agir corretamente e comunicar adequadamente em cada etapa é fundamental. A crise vai ser sempre lembrada, mas sempre será melhor que a marca / empresa / organização responsável seja percebida como um exemplo de quem agiu e se comunicou bem, minimizando a dor das vítimas e cumprindo com as suas responsabilidades.
Ser lembrada pelos erros e pelo sofrimento gerado, como é o caso das duas tragédias que aniversariam no final do mês de janeiro, no Brasil, é carregar uma dura reserva de desconfiança e rejeição que recai sobre a reputação de marcas e pessoas e que compromete a razão de existir de uma organização.